Vôo 5125
Quase sempre se perde o vôo. Há a linha embaraçosa que se estende da vida para o cotidiano invisível que nos engole todos os dias. A indiferença forçada nos aeroportos como se eles só fossem preenchidos de pessoas sábias, superiores a nível abstrato. Quando você se sente pequeno talvez se encurrale dentro do próprio olhar - este direcionado agora só para as telas iluminadas e abarrotadas de números e informações objetivas sobre a cabeça de toda a indigência. O momento precede a busca pela fuga de toda essa insensatez que eu acho que são os olhares vagos nos aeroportos. Como se o passo seguinte após estar dentro fosse jogar um jogo de miudezas.
A chuva é um refúgio gigante para os humanos pequenos sob o metal e a tecnologia. Ela cai fina e traz a delicadeza oposta à correria que nos embaça a ordem. Logo me vejo participando de um desfile da pista para o avião, fúnebre pareceria não fossem os guarda-chuvas coloridos. Sigo Singing in the rain enquanto giro meu guarda-chuva e salto sobre as poças de água com a minha bota amarela. Dou um gigante boa noite ao rapaz que na chuva nos aguarda no início da escada, designado a recolher os guarda-chuvas de toda aquela gente muda e apressada. Tenho quase certeza de que as pessoas atrás de mim sentiram vontade de soltar um sorriso amarelo, mas já estava escuro, "não adianta", pensam seus sorrisos escondidos.
A próxima cena do vôo cinco um dois cinco direciona um close especial à aeromoça loira e ao piloto que chegara atrasado. Aqui eu não consigo entender com profundidade como se sentem as pessoas. Eu sei que elas permanecem eretas e tentam passar a impressão de familiaridade com a tripulação, com a experiência de voar e com a vida marcada na agenda. As gotas deixam desenhos na janela e uma luz amarela pisca na asa da aeronave. Olhando para ela, pequena e sozinha na escuridão do meu ponto de vista, eu imagino as lamparinas dos acampamentos que fazíamos, brilhando silenciosas em meio às árvores e à noite escura. A minha imaginação vai dos grilos e dos sapos da fazenda ao zumbido seguido pelo anúncio do serviço de bordo. O lanche é também uma linguagem universal, não é? Eu não entendo muito de comer, então prefiro ignorar esta parte da jornada - comendo. Um adendo para prosseguir: percebo que todo o gelo é quebrado depois da comida, sempre, em todo vôo. Aliás, o que continua inteiro depois de uma explosão de pacotes se abrindo e lixo sendo produzido? rsrs.
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Fotografia de Manoel Veiga, Céu Reverso, 2013 |
Depois de muito suspiro em cada poltrona, muitas conferidas em cada relógio e de muitos minutos de atraso, a voz redentora anuncia que estamos liberados para pousar. No corredor ao lado um homem faz o sinal da cruz. Atrás de mim uma menina se espreguiça com alívio. Eu olho mais uma vez para as nuvens negras, agradeço ao universo pelo breve momento de meditação (que aqui você pode pagar em 10x ao invés de aderir ao budismo) e sorrio para o meu reflexo, um retrato de mim a sabe-se lá quantos pés de altura.
As luzes se acendem, as pessoas se movimentam em silêncio e a vida vai seguir pela terra. Olho para nós. Nós, os robôs que escrevem para não sorrir para o companheiro de janela do outro lado da aeronave. Nós, poeira estelar cobrindo o chão da Terra até que o vento nos arraste novamente para outro lugar. Nenhuma mala que cai é mágica. Nada acontece.
Obrigada por voar conosco.

meu nome é Luria. sou discípula de manoel de barros e um beco sem saída com histórias guardadas no peito pra serem descarregadas, ora em palavras, ora em imagens.
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