escrevendo do quarto de terra

     
     Arrasta pé é enxergar o mundo mais de cima. Quando você para o pé o efeito quase passa.

    Te falo em arrasta pé porque quando o tempo esfria de verdade pra cá todo mundo se reúne pra fazer fogueira depois do bar do Tonico. E aí surge música: a sanfona canta baixinho, caminha junto com a madrugada e para pouco antes do primeiro galo cantar. Então todo mundo separa a procissão, cada qual pra sua casa, cama e sonho. Chego e acendo uma vela. Perto da porta, num altarzinho sem padroeira ou deus oficial eu agradeço pelo dia e desejo alegria pro próximo. Gosto da luz do lampião, mas em noite de Lua cheia eu deixo ela brilhar pela casa. Bebo um gole de café quase frio, deito na rede e leio até o rato começar a passear pelas vigotas. Se ele já desceu significa que é hora de eu ir pra cama.
    Acordo com o Sol batendo na travessa de alumínio onde eu deixo pão de queijo. O reflexo quente é um despertador eficaz. O rádio do bar faz papel de sino da igreja, mas não é sempre que a ressaca deixa os cristãos daqui irem à missa. Às nove, a programação de música sertaneja começa no Tonico. Aqueles que não conseguiram levantar pra rezar são pontuais pra beber.
    Vou viver o dia no tempo desse lugar, que é mais entre tantos outros com seus tempos. O vento é que dita o ritmo das horas por aqui. Onde tudo parece sujeito à solidão (pros outros), a poeira se mistura com o mato, a água é ao mesmo tempo verde e azul e a praça que não existe povoa o imaginário de todos que se sentam juntos anoite pra celebrar nossa família invisível.

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meu nome é Luria. sou discípula de manoel de barros e um beco sem saída com histórias guardadas no peito pra serem descarregadas, ora em palavras, ora em imagens.

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